Naquela noite Clarice se deitou mais cedo, estava com um sono estranho, fora de hora. Por sinal, o dia todo tinha sido muito esquisito. Desde manhã, quando acordou, passou o tempo sentindo um aperto no peito, uma ansiedade inexplicável, como se algo definitivo estivesse para acontecer a qualquer instante. Não conseguiu se concentrar no trabalho, nos estudos, havia realmente um clima misterioso no ar. Tudo muito incomum, já que Clarice sempre fora uma pessoa tranqüila, quieta até demais, com humor e paz sempre inabaláveis.Talvez por isso mesmo desconfiasse, de uns tempos pra cá cada vez mais, que não era desse mundo. Devia ser de outro planeta, outro tempo, outra dimensão. O fato é que Clarice nunca conseguiu entender as complexas emoções humanas e se sentia como uma estrangeira na Terra.
Paixões e tristezas para ela sempre foram um mistério. Não entendia também por que as pessoas precisavam mentir, o jogo intrincado de dissimulações, motivos, segundas intenções ou ironias. Quando era criança uma vez se jogou embaixo da mesa quando o tio comentou: “Hoje vai chover canivetes”. Sua mãe sempre fazia uma careta e dizia “que bonito, heim!” depois de uma travessura e ela concluía que a mãe estivesse aprovando sua brincadeira. Contou ao seu professor de literatura no ginásio: “Não compreendo como alguém pode sentir paixão e ciúmes ao mesmo tempo. Tenho dificuldade de estabelecer empatia com os personagens de um livro. Li Romeu e Julieta duas vezes e fiquei desconcertada. Nunca entendi como duas famílias poderiam ser tão inimigas e duas pessoas tão apaixonadas, até a morte”.
Vivia como eterna criança, quieta, meditativa. Suas emoções eram simples, universais, sinceras. Em contrapartida, inteligência e memória eram extraordinárias. Para sobreviver, decorou códigos e convenções sociais. Quando via, por exemplo, lágrimas escorrendo no rosto de alguém, sabia que isso significa que a pessoa está triste porque aprendeu intelectualmente. Imediatamente procurava alguma maneira de ajudar, de encontrar uma solução racional e objetiva.
Outra característica importante da mente de Clarice, descrita por ela mesma numa carta à sua mãe, é como se organiza sua memória: “Eu penso de forma virtual. Todos os meus pensamentos são ‘fotos’ guardadas na minha cabeça. Minha mente funciona como a Internet. As imagens armazenadas não se misturam, mas estão ordenadamente ‘lincadas’ e associadas como páginas. Penso de forma associativa e minha cabeça é um enorme banco de dados.”
Sem emoções complicadas e com a incrível inteligência de cérebro organizado como um computador, Clarice sempre fascinou os “normais”. Seus sentimentos “primitivos” lhe conferem inocência e sinceridade. Se tem dificuldade em compreender as paixões humanas, compensa com uma enorme compaixão por todos os seres vivos, pela natureza, animais, especialmente o gado - ela criou abatedouros que permitem uma morte menos cruel. Tinha então 28 anos e estava prestes a se tornar PhD em zootecnia pela universidade de Harvard.
Com sua fala pausada, quase sem entonação e seu olhar estrangeiro, nos faz pensar sobre o nosso mundo. A clareza sobre suas próprias deficiências impressionava qualquer um. Impressionava até mesmo sua própria psicanalista, que confessou: “É fascinante. Você fala melhor de suas próprias dificuldades porque se vê de uma forma clínica, fria, científica. Eu não falaria da mesma forma sobre mim mesma.”
Clarice gostava de ficar imaginando como seria o seu mundo imaginário. Pensava: “De onde eu vim, todas as pessoas são confiáveis simplesmente porque dizem a verdade. Não existe razão para mentir. Também não existe nada de burocracia. Documentos, contratos, certidões, atestados, toda essa papelada é obsoleta e inconcebível.” Mesmo com sua memória prodigiosa, vivia tendo problemas com essas pequenas coisas chatas do cotidiano. Tinha dificuldade em lidar com papéis e sempre perdia suas chaves.
Estava a pensar em todas essas coisas quando adormeceu. Logo sonhou com uma pequena bola de fogo que foi crescendo, aumentando cada vez mais sua luminosidade, até ofuscar seu sonho. Despertou. Olhou para a penteadeira com os olhos semicerrados e viu sua flor desabrochada no vaso. O sol continuava ofuscante. Não aquecia, mas inundava a sala com sua luz avassaladora. Em vão tateou a procura dos seus óculos escuros. As cores tinham desaparecido, todos os sons tinham se fundido no silêncio. Apenas gotas pingavam insistentemente. Sua clarividência aumentava junto com o barulho dos pingos. Sua ignorância se derretia junto com a cera da vela de sete dias acesa. Percebeu a sincronicidade, já não tinha medo, não tinha vergonha, achou que podia ainda estar sonhando. Pensava em tudo ao mesmo tempo. Não era sonho. Seus sentidos estavam perdidos, espalhados, nada poderia lhe proteger daquela luz. Clarice estava vulnerável. O sol invadiu seu espírito, diante daquela luz sua alma e seu corpo estavam despidos.
Por isso durante todo o dia pressentira algo estranho: havia chegado a hora de ser arrastada, de sucumbir. “Time to go away!” - ela disse, e a luz a levou embora. Assim, como quem não quer nada, ela se deixou levar totalmente.
Estava a pensar em todas essas coisas quando adormeceu. Logo sonhou com uma pequena bola de fogo que foi crescendo, aumentando cada vez mais sua luminosidade, até ofuscar seu sonho. Despertou. Olhou para a penteadeira com os olhos semicerrados e viu sua flor desabrochada no vaso. O sol continuava ofuscante. Não aquecia, mas inundava a sala com sua luz avassaladora. Em vão tateou a procura dos seus óculos escuros. As cores tinham desaparecido, todos os sons tinham se fundido no silêncio. Apenas gotas pingavam insistentemente. Sua clarividência aumentava junto com o barulho dos pingos. Sua ignorância se derretia junto com a cera da vela de sete dias acesa. Percebeu a sincronicidade, já não tinha medo, não tinha vergonha, achou que podia ainda estar sonhando. Pensava em tudo ao mesmo tempo. Não era sonho. Seus sentidos estavam perdidos, espalhados, nada poderia lhe proteger daquela luz. Clarice estava vulnerável. O sol invadiu seu espírito, diante daquela luz sua alma e seu corpo estavam despidos.
Por isso durante todo o dia pressentira algo estranho: havia chegado a hora de ser arrastada, de sucumbir. “Time to go away!” - ela disse, e a luz a levou embora. Assim, como quem não quer nada, ela se deixou levar totalmente.
4 comentários:
Ah, sim, sim! Claro! Podemos, sim.
Pedro Antônio
Querido,
É preciso dizer mais?
Perfeito!
A&L
Personagem encantadora e complexa em sua simplicidade.
Queria eu poder alcançar esse grau de consciência sobre mim mesmo.
O nome da personagem é o mesmo de minha escritora favorita, e é impossível eu ler um texto que tenha um personagem chamado "Clarice" e não lembrar dela, no entanto nesse conto a "minha" ficou bem longe. Acho que pela linearidade e falta de sentimentos.
Enfim, gostei muito e o final foi ótimo!
Parabéns.
Abraço.
Meu blog de contos e ideias, caso queira ler as besteiras que eu escrevo:
http://www.louco-pensador.blogspot.com/
Lucas, tb amo Clarice Linspector. Aliás, batizei esse personagem em homenagem a ela, apesar de serem beeeeem diferentes. Tô indo lá fazer uma visita no seu blog. Abraço!
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